sexta-feira, 30 de maio de 2014

De repente, Pessoa...


"De repente, como se um destino médico me houvesse operado de uma cegueira antiga com grandes resultados súbitos, ergo a cabeça, da minha vida anônima, para o conhecimento claro de como existo. E vejo que tudo quanto tenho feito, tudo quanto tenho pensado, tudo quanto tenho sido, é uma espécie de engano e de loucura. Maravilho-me do que consegui não ver. Estranho quanto fui e que vejo que afinal não sou.
Olho, como numa extensão ao sol que rompe nuvens, a minha vida passada; e noto, com um pasmo metafísico, como todos os meus gestos mais certos, as minhas ideias mais claras, e os meus propósitos mais lógicos, não foram, afinal, mais que bebedeira nata, loucura natural, grande desconhecimento. Nem sequer representei. Representaram-me. Fui, não o ator, mas os gestos dele.
Tudo quanto tenho feito, pensado, sido, é uma soma de subordinações, ou a um ente falso que julguei meu, por que agi dele para fora, ou de um peso de circunstâncias que supus ser o ar que respirava. Sou, neste momento de ver, um solitário súbito, que se reconhece desterrado onde se encontrou sempre cidadão. No mais íntimo do que pensei não fui eu.

Vem-me, então, um terror sarcástico da vida, um desalento que passa os limites da minha individualidade consciente. Sei que fui erro e descaminho, que nunca vivi, que existi somente porque enchi tempo com consciência e pensamento. E a minha sensação de mim é a de quem acorda depois de um sono cheio de sonhos reais, ou a de quem é liberto, por um terremoto, da luz pouca do cárcere a que se habituara.
Pesa-me, realmente me pesa, como uma condenação a conhecer, esta noção repentina da minha individualidade verdadeira, dessa que andou sempre viajando sonolentamente entre o que sente e o que vê.

É tão difícil descrever o que se sente quando se sente que realmente se existe, e que a alma é uma entidade real, que não sei quais são as palavras humanas com que possa defini-lo. Não sei se estou com febre, como sinto, se deixei de ter a febre de ser dormidor da vida. Sim, repito, sou como um viajante que de repente se encontre numa vila estranha sem saber como ali chegou; e ocorrem-me esses casos dos que perdem a memória, e são outros durante muito tempo. Fui outro durante muito tempo — desde a nascença e a consciência —, e acordo agora no meio da ponte, debruçado sobre o rio, e sabendo que existo mais firmemente do que fui até aqui. Mas a cidade é-me incógnita, as ruas novas, e o mal sem cura. Espero, pois, debruçado sobre a ponte, que me passe a verdade, e eu me restabeleça nulo e fictício, inteligente e natural.

Foi um momento, e já passou. Já vejo os móveis que me cercam, os desenhos do papel velho das paredes, o sol pelas vidraças poeirentas. Vi a verdade um momento. Fui um momento, com consciência, o que os grandes homens são com a vida. Recordo-lhes os atos e as palavras, e não sei se não foram também tentados vencedoramente pelo Demônio da Realidade. Não saber de si é viver. Saber mal de si é pensar. Saber de si, de repente, como neste momento lustral, é ter subitamente a noção da mônada íntima, da palavra mágica da alma. Mas essa luz súbita cresta tudo, consume tudo. Deixa-nos nus até de nós.

Foi só um momento, e vi-me. Depois já não sei sequer dizer o que fui. E, por fim, tenho sono, porque, não sei porquê, acho que o sentido é dormir".

terça-feira, 20 de maio de 2014

O sujeito Vitimizado: A boa imagem contra o algoz externo



“Qual a tua contribuição na desordem da qual te queixas?” 
J. Lacan


Muita coisa pra fazer, e parece que só eu é que trabalho.
Muita coisa para se preocupar e parece que só eu é que me importo.
Eu tenho direito de fazer alguma coisa, afinal eu pareço fazer sempre mais que o outro!
Ninguém tem tantos papéis quanto eu tenho.
É esta sua psicoterapia que te alienou!
Você só pode ter outro(a) pra querer isso!
Aposto que tem alguém te influenciando.    

Tem gente que não consegue se responsabilizar por suas escolhas. Não consegue perceber a sua responsabilidade diante das mudanças. Prefere se vitimizar e manter o personagem do “eu não tenho culpa” ou “eu não queria, estou sendo obrigada”. Este tipo de pessoa tende a transferir os seus problemas para os outros; transfere para as circunstâncias, para o mundo exterior, para o outro. Nunca assume a sua posição diante da vida e sempre culpa o outro pelo que está acontecendo no seu modo de encarar e perceber a vida. Esta é a postura da justificativa e da racionalização. 

“Justificar-se é o sinal de que não queremos mudar. Para não assumirmos o erro, justificamo-nos, ou seja, transformamos o que está errado em injusto e, de justificativa em justificativa, nos paralisamos e impedimo-nos de crescer”. Talvez pelo medo (equivocado e impossível) de que não se pode fracassar e que sendo assim, o fracasso estará sempre no outro. Ou vindo do outro. “O outro é quem quis assim...eu não tenho culpa alguma” 

A covardia deste comportamento está em usar uma máscara e forjar um personagem que não assume a suas decisões e suas deficiências. Prefere transferir aquilo que deseja para uma suposta decisão do outro. É uma espécie de racionalização. De encontrar uma justificativa plausível e eticamente aceitável para o próprio Ego. Uma forma de se desimplicar. De não se comprometer com a escolha ou com o acontecido. Imagina-se assim que não se corre o risco do arrependimento. Da responsabilidade e da dor de se bancar uma decisão. De assinar sua escolha. Da angústia de se escolher sem garantias. De se demarcar posição. Ela sempre aponta no outro aquilo que falta nela. Ela sempre deseja que outro seja aquilo que ela não consegue ser. Que faça aquilo que não consegue fazer.

A questão central é que agindo assim, esta pessoa consegue arrastar (mesmo que por algum tempo) a atenção e o olhar piedoso do outro, que normalmente acredita que a pessoa realmente foi injustiçada por alguém ou algo. Mesmo isso não sendo a verdade plena, ser “vítima do outro” (responsabilizando-o por toda decisão), implica em um aglomerado de ganhos secundários, além da atenção das pessoas (e de si própria): o apoio, o amparo, a solidariedade, a disposição em lhe ajudar, enfim, muitas coisas satisfatórias. Sem essas vantagens, este comportamento não se sustentaria.

Aliás, a manutenção da boa imagem para os outros parece ser essencial e uma das maiores buscas de quem se vitimiza ou se desresponsabiliza. Ela tenta manter uma imagem de lutadora combalida. E para sustentar é preciso que se tenha um algoz. Sempre alguém ou algo externo. Alguém que personifique e assuma toda a responsabilidade. Nada pode ser mais covarde que transferir as próprias limitações para a conta do outro. Produzir uma marca no outro para evitar que a sua apareça. Buscar dominar o outro, através da sua postura de dominada.  

E se a pessoa não se responsabiliza, ela normalmente se sente como quem mais se dedica. Assim como nas frases iniciais desta publicação, ela está sempre se dedicando demais e recebendo de menos. Na relação com o outro, ela supostamente está sempre oferecendo um pacote irresistível de bondade, dedicação, sinceridade e amor.  Mas é claro que cobra um preço por “tamanha bondade e oferta”.  E a principal é uma cobrança desmedida que visa à inserção do sentimento de culpa, da desqualificação e da quebra da auto-estima do outro. E aí é um passo para recomeçar o eterno ciclo de queixa, vitimização, cobrança, frustração...